segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A esquerda pós-Lula




DEBATE ABERTO

Do site " www.cartamaior.com.br"

A esquerda pós-Lula

O PT não pode se confundir com sua principal liderança que, na percepção do eleitorado, se autonomizou do partido. A legenda vive o dilema de não poder permanecer a reboque de Lula e muito menos a ele se opor em qualquer questão. Essa fragilidade revela o quê?

Na foto, Gilson Caroni Filho

Talvez 2009 venha a ser a hora e a vez de Augusto Matraga para o campo progressista. Tal como no conto de Guimarães Rosa, o próximo ano trará em si um convite à reflexão sobre conflitos internos e discussões que não deveriam ser adiadas. É preciso realizar o inventário de nossos erros e acertos. Não parece um bom caminho adiar a discussão necessária, usando como argumento os bons números das pesquisas. Eles refletem o êxito obtido, mas não garantem que a agenda liberal-conservadora tenha sido sepultada em alguma esquina do passado. Os que aprendem com a história sabem que uma política de reversão de quadros é sempre uma possibilidade viva.

Como já destacou, aqui mesmo, o sociólogo Emir Sader, o Partido dos Trabalhadores "precisa revigorar-se social e ideologicamente, para voltar a desempenhar um papel importante no campo político e ideológico do país". Ignorar tal exigência ou protelá-la, como tem sido feito, pode levar a uma perigosa junção: o otimismo ingênuo do pensamento coincidindo com a paralisia da ação. É a pior forma de pavimentar a estrada da direita.

Lula já assegurou seu lugar na história. Foi o fiador bem-sucedido de um novo projeto de país. Sob seu comando o Brasil cresceu, possibilitando o ataque imediato aos problemas de exclusão social, incorporando dezenas de milhões de brasileiros ao mundo do consumo. Sem abandonar a estabilidade, operou de forma consistente processos de redistribuição de renda que, contribuindo para a ampliação do mercado interno, tiveram função irradiadora sobre o conjunto da economia, incluindo tanto os setores de bens duráveis como os de bens de capital. Para quem ainda afirma que a equipe econômica nomeada pelo presidente seguiu à risca o modelo neoliberal defendido pelos ministros do governo anterior os números falam por si: o aumento real do salário mínimo, que subiu mais do que o triplo da inflação acumulada desde 2003 e a redução da relação dívida/PIB de 55,5% para 36,6%, enquanto que no governo FHC subiu de 30% para 55,5% são bons exemplos de ruptura.

Mas não podemos esquecer que a crise de 2005 enfraqueceu o partido que um dia se definiu como pós-comunista e pós-social-democrata. Não devemos esquecer que a ilusão de modificar a sociedade a partir do Estado foi o principal erro de uma direção que, descolada dos movimentos organizados, centralizou o poder e interditou o debate com outras tendências. Em artigo publicado na revista "Teoria e Debate”, o cientista político Fábio Wanderley afirmou que a reparação seria "incerta e será no mínimo demorada, envolvendo a difícil tarefa de juntar os cacos da fusão inédita que parecia haver na trajetória petista entre o vigor do capital simbólico e os fatores propícios à inserção realista e eficiente no processo político-eleitoral".

E esse é um processo que ainda precisa ser superado. Para tanto o PT não pode mesmo se confundir com sua principal liderança que, na percepção do eleitorado, se autonomizou do partido. A legenda vive o dilema de não poder permanecer a reboque de Lula e muito menos a ele se opor em qualquer questão. Essa fragilidade revela o quê? Incapacidade de formulação estratégica? Ausência de novas lideranças carismáticas? Descolamento do pulsar dinâmico dos movimentos sociais, mananciais inesgotáveis de intelectuais orgânicos? Ou a conjunção de todos os fatores citados?

Ousar compor, durante o processo eleitoral, com setores que historicamente se situaram no campo oposto ao da esquerda democrática, foi um gesto de ousadia. Como bem destacou Plínio de Arruda Sampaio, em entrevista ao JB, em 2005: ''há plena consciência, em todos os setores da esquerda, de que o PT chegou ao governo'', mas não ao poder”.

A interlocução com atores conservadores continua se fazendo necessária se queremos obter êxito no repactuamento reivindicado por amplos setores da sociedade civil. Isso é indiscutível. Mas, no interior desse bloco, cabe ao PT reafirmar seu papel de esquerda socialista. Compete a ele a interlocução privilegiada com o MST e outros movimentos organizados. Há uma reforma agrária por fazer, um latifúndio intocado e uma militância a ser reanimada através da práxis. Os segmentos pobres que apóiam o governo precisam de organização para não estagnar em um perigoso consenso passivo.

Resgatar um projeto hegemônico requer coragem para confrontar erros recentes. A ação da esquerda nos marcos do Estado de Direito deve conciliar a política institucional com a dinâmica dos movimentos sociais dos quais se origina. Lutar pela conjugação de forças dos mundos do trabalho e da cultura é imperativo. E, à luz de tudo por que passamos recentemente, aperfeiçoar mecanismos de controle do capital na esfera política. Por fim, reconhecer o "lulismo" como expressão de um momento vitorioso, mas que precisa ser superado dialeticamente e não vivido de forma messiânica.

Politicamente interessada na desestabilização do governo, a oposição, no entanto, sabe dos riscos e do alto grau de incerteza de um quadro de completa desagregação política. As declarações de líderes oposicionistas são sintomas desse desinteresse por uma corrosão completa do sistema político, indicando a preferência por trabalhar em um cenário com alguma previsibilidade. Para a grande imprensa o "pós-Lula" tem o odor de terra arrasada. De desconstrução de políticas públicas implementadas nos dois mandatos e de restabelecimento de uma agenda externa submissa aos interesses estadunidenses. Para enfrentar esse cenário, o PT precisará reiventar-se a partir de sua própria história.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e colaborador do Observatório da Imprensa.


O opinião do Blog

Faz uns meses já temos nos referido ao debate do "pós-LULA".

O texto do Professor Gilson Caroni é oportuno mas traz alguns equívocos, sobretudo quando compara os números da relação dívida/pib do governo LULA com aqueles atingidos ao final do mandato de FHC. Ora, se de um lado FHC entregou o tesouro nacional aos credores da dívida, emitindo títulos até o patamar de uma dívida pública de quase 60% do PIB, nos governos de LULA se fez o efetivo pagamento dessa dívida contratada na gestão FHC. Qual o mérito de se tirar receitas da sociedade e transferi-las primeiro aos mais ricos(pois ai reside a redução da relação dívida/pib no governo LULA) ? Ou será que LULA trouxe a relação dívida/pib para 36% transferindo primeiro dinheiro do tesouro nacional aos mais pobres ?

É evidente que com a inflação sob controle( às custas de elevadas taxas de juros e altíssimos pagamentos de serviços da dívida pública), com o salário mínimo se elevando acima da inflação, com o bolsa-família incorporando ao consumo quase 10 milhões de famílias e com a economia lá fora nos chamando a produzir e a exportar(sobretudo as comoditties agrícolas e os minerais estratégicos), não havia como não se produzir um " Q " de diferença em relação ao período de FHC, sobretudo porque naquela época houve sucessivas crises externas com pesados efeitos na movimentação dos capitais que entravam e saíam do pais, o que LULA só veio sentir nesse crise de 2008.Além disso, é bom lembrar que enquanto os juros foram mantidos em níveis recordes, capitais especulativos invadiram o país apreciando o real e reduzindo o peso da dívida externa em relação às reservas cambiais.

Um simples olhar nos números dos orçamentos federais desde 2003 mostrará que, seguidas vezes, os dispêndios com serviços(juros) e amortização da dívida pública superaram os gastos conjuntos de saúde, educação, ciência e tecnologia e combate à pobreza, o que só se altera(permanecendo para 2009 um quase empate), na proposta de orçamento para 2009.

É verdade que houve avanços na reformulação de várias carreiras de estado, concursos públicos, planos de carreira e recomposição de valores salariais historicamente defasados no setor público, bem como na expansão do ensino público superior, com as dezenas de novas unidades dos CEFETS, com o FUNDEB(embora com valores e complementação de verbas federais aos estados e municípios irrisórios e com um piso salarial baixíssimo, agora derrubado no STF na divisão entre carga horária docente em sala de aula/horas remuneradas para estudo e preparação de aulas). Avanços também foram verificados com Programas Específicos como o PRONASCI, mas sequer os próprios orçamentos dos novos Ministérios( mulheres, direitos humanos, igualdade racial) chegaram a níveis consideráveis que permitissem o resgate efetivo da exclusão dessas populações.

Contra toda essa expectativa o governo manteve por duas vezes a DRU, a famigerada desvinculação das receitas da união, para permitir que melhor se compusse o superávit primário sagrado, destinado ao pagamento dos juros da dívida pública.

Ou seja, nos dois governos de LULA os mais ricos receberam primeiro do tesouro nacional o pagamento de seus "investimentos na dívida pública" ficando em segundo ou terceiro plano os que não têm hospitais, água encanada, escola e moradia com dignidade.

Na verdade, em nome de uma governabilidade macroeconômica amistosa para com os rentistas da dívida, já na "Carta ao Povo Brasileiro", de 2002, a senha dos "bons costumes fiscais" estava dada ao capital financeiro. Os governos de LULA, com o PT na dianteira, amordaçaram o debate alternativo a essa política macroeconômica no campo da esquerda, dentro do partido , na academia(com raras ousadias)e nos movimentos sociais.

Agora mesmo na crise, onde está e para quê serviu o " grau de investimento" dado ao país e intensamente comemorado por governistas e petistas outros por algumas agências de classificação de risco internacionais ?

Em que se transformou o movimento sindical na era LULA presidente ?

Num punhado de centrais sindicais regiamente alimentadas por verbas federais para a realização de "n" convênios de capacitação de trabalhadores e, mais recentemente, num fabuloso exército de centrais alimentadas pelo imposto sindical, que tanto combatíamos desde a fundação da CUT e do PT nos anos 80 do século XX.

O mais grave, além da questão programática, é a questão dos métodos, ai evidenciando-se a crise do "mensalão", as campanhas milionárias, o aparelhamento da máquina de governo por algumas correntes internas(também verificado nos estados e prefeituras governadas pelo PT), num cenário novo na história petista, o das campanhas pagas nas ruas, onde a militância ficou literalmente para trás !!

Não acredito que isso vá mudar. Quem se acostumou a fazer campanhas com a máquina pública à sua disposição( sobretudo com cargos a serem oferecidos em troca de apoio político) não voltará a fazê-las em cima de temas de políticas públicas e da organização consciente dos trabalhadores. Ficou mais fácil comprar apoio com dinheiro e cargos do que criar laços de luta que alimentam o voto consciente em candidaturas com esse perfil militante.

Sonha ingenuamente quem ainda crê que o PT voltará a combater as práticas históricas da direita, quando na gestão do aparelho de estado.

Quantas brigas ou enfrentamentos, mesmo programáticos, os dois mandatos de LULA produziram com os que ocupam " o andar de cima" da economia e do poder na sociedade brasileira ? O PAC foi uma engenhosa obra, embora não tenha sido explicado porque o "crescimento" não ocorreu nem se acelerou, de fato, nos quatro primeiros anos de LULA, combinando hipermídia com algumas investimentos estratégicos.

Porém, tudo o que se previu no PAC entre 2008 e 2001 seria suplantado pelo estoque de títulos da dívida pública a vencer apenas em 2008.

Nos governo de LULA os mais ricos ganharam mais, os transgênicos foram liberados, a mídia ultra conservadora e de absoluto poder na produção da informação permaneceu intocável, a reforma agrária avançou a passos lerdos.

Urge discutir, fundamentar e apontar as bases de uma nova democracia, radicalmente fundada na organização da sociedade, no controle social, na tutela dos interesses populares sobre os interesses coorporativistas de parlamentares e de gestores/senhores da máquina pública,na busca de uma unidade latinoamericana que reforce não apenas a soberania externa dessas nações mas, sobretudo, interna, da democracia e dos interesses públicos frente aos interesses dos grupos eternamente corruptores na máquina estatal e daqueles que avançam, há pelo menos duas décadas, sobre o tesouro nacional como forma de multiplicarem seus ativos e suas aplicações na dívida pública do tesouro nacional.


Até para isso avançamos, com a aprovação de um sem-número de leis e estatutos que transferem para mais próximo da sociedade civil a fiscalização, a definição de políticas e a própria gestão coletiva das ações de governo, como podemos destacar no SUS, na execução do FUNDEB, das novas leis de saneamento e de habitação de interesse social, sobretudo nas normas democráticas para a formação das leis de orçamento, previstas no Estatuto da Cidade.

Nessa trajetória poderá florescer a compreensão do todo, a partir de cada interesse específico. Toda demanda social implica em impacto sobre a receita pública, gerada por uma monumental e distorcida carga tributária, receita esta que é, como já definia Marx no século XIX, um enorme atrativo para a acumulação privada na esfera financeira, mediante a emissão de títulos públicos pelo tesouro e sua aquisição pelo capital parasita, alheio ao investimento produtivo material e sedento em usca da reprodução e da acumulação às custas da dívida pública.

É de se perguntar se LULA teve a percepção desssas contradições em seu governo, ou terá pensado como o fez FHC ante a "GLOBALIZAÇÃO" ?

FHC disse que esse fenômeno( da globalização) era inevitável, daí ter feito o que fez(com alienação de patrimônio, desmonte do estado etc ).Terá LULA imaginado que só poderia fazer o conseguiu fazer nesses anos todos, seguindo o caminho " do possível", frente a uma bancada minoritária da esquerda desde 2003 no Congresso e diante da avassaladora dominação do capital financeiro sobre a mídia majoritária e sobre as contas nacionais ?

Por que, em momento algum, LULA e o PT, sobretudo seus aliados no campo de esquerda,chamaram as classes trabalhadoras a algumas mobilizações para que se gerasse o necessário tensionamento frente às maiorias/hegemonias conservadoras no Congresso, na mídia e na esfera macroeconômica ?

Espero que esse debate floresça nas categorias sindicais, nos movimentos sociais e já no final de janeiro, no FORUM SOCIAL MUNDIAL, em Belém, pelo salutar e necessário debate demcorático e pela fundamental e estratégica necessidade da esquerda brasileira se colocar frente a um cenário que virá, querendo ou não, o pós-LULA.

Se vamos conseguir acumular nesses dois anos para constuirmos uma aliança alternativa já no 1o. turno de 2010 à candidatura apoiada por LULA, talvez com o PT e o PMDB casando-se formalmente nas eleições próximas, é um processo que só nossa clareza de avaliação a partir de 2009 e capacidade de mobilização até lá poderá apontar.

Mas perderemos uma enorme oportunidade de fazer política com debate de qualidade se a esquerda embrenhar-se no pragmatismo da continuidade do governo atual, valendo-se dos cargos e da máquina que tem no governo a seu dispor, alimentando um maniqueísmo pobre entre esse projeto e a velha direita do PFL-DEM e do PSDB.

Nenhum comentário: