Do site da UOL
19/06/2008 - 09h05
Breno Castro Alves
Especial para o UOL
Em São Luís (MA)
No relatório final da CPI do Sistema Carcerário, que deve ser apresentado nesta quinta-feira na Câmara dos Deputados, o deputado Domingos Dutra (PT-MA) estima que seriam necessárias, hoje, 180 mil vagas para que não houvesse superlotação nos presídios brasileiros -o sistema, que tem capacidade para 260 mil detentos, abriga 440 mil.
Em entrevista ao UOL, Dutra descreve os resultados dos oito meses de funcionamento CPI e conta o que viu nas visitas a alguns dos piores presídios do país.
"Encontramos tortura psicológica e física em quase todos os presídios visitados", afirma Domingos Dutra, relator da CPI do Sistema Carcerário
Após meses de imersão no sistema carcerário nacional, gostaria que o senhor começasse dando uma visão mais abrangente da situação no país. O sistema está realmente falido?
Não diria que está falido, o qualifico como caótico. Essa caracterização é pública, pelos mais diversos motins e rebeliões ocorridos no ultimo ano e pelo que a CPI constatou. O caos pode ser medido pela superlotação criminosa, pela existência de um número muito grande de presos provisórios, pela deficiência da assistência jurídica e pela quase inexistência de ressocialização.
Se expressa na falta de ocupação, 80% não trabalham e 82% não estudam, e também na falta de assistência médica no interior do presídio. Presos com doenças que vão de tuberculose ao HIV estão sem cuidados em ambientes insalubres. Finalmente, encontramos tortura psicológica e física em quase todos os estabelecimentos visitados.
E a questão dos presos que já cumpriram pena e ainda estão encarcerados?
Isso está incluído na deficiência jurídica, que começa já no inquérito policial. A quase totalidade dos presos no Brasil é de pessoas pobres, originárias de periferia, em sua maioria negros, pardos e semi-analfabetos. Prestam depoimento sem advogado e enfrentam uma linguagem técnica que não entendem, totalmente deslocada de sua realidade. No processo, a maioria continua sem advogado, a defensoria publica é insuficiente e os juízes convocam advogados da ativa, profissionais a que se precisa pedir favores para garantir o que a Constituição estabelece, que é o direito a defesa. O resultado dessas distorções são condenações desproporcionalmente altas. E na execução da pena de um criminoso comum é quando o inferno fica escuro, ele é jogado na cela e não recebe qualquer tipo de acompanhamento.
De 2003 até agora, a policia federal prendeu 4.000 acusados, entre prefeitos, juízes, advogados, contadores e hoje uma porcentagem muito baixa deles seguem presos. Um dos motivos é a estrutura jurídica de que dispõem, bons advogados, respaldo e poder político. Em mais de 60 estabelecimentos prisionais em 18 estados não encontrei nenhum crime do colarinho branco ou um grande traficante. Só se acha lá os lascados, os soldados rasos.
Quais alternativas e dispositivos a CPI ira propor à sociedade brasileira?
São muitas. A principal é que o gestor do sistema penitenciário cumpra a lei. Poderia terminar essa CPI com um projeto com dois artigos. Primeiro: as autoridades brasileiras são obrigadas a cumprir a lei que regula o sistema carcerário. Segundo: prenda-se quem descumprir as leis do Brasil.
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Detalhando, temos muitas sugestões. Uma é criar vagas no sistema. Dois, fazer um censo nacional dos presos, para podermos saber quantos existem e a situação de cada um. Três, um mutirão urgente para poder colocar na rua aqueles que estão ilegalmente detidos. Estima-se que 30% dos presos, com uma assessoria jurídica adequada, conseguiriam a liberdade.
De um universo de 440 mil presos, 30% representam 130 mil pessoas que deveriam estar em liberdade, não onerando o Estado. Quarta, fazer com que os governos dêem oportunidade de trabalho e estudo, que é sua obrigação. É preciso valorizar as penas alternativas, encontramos muita gente presa porque roubou duas latas de leite ou um radio de pilha no supermercado, ao invés dessa pessoa estar dando custo para nós todos sem produzir nada e deixando a família ao relento, deveria estar trabalhando para o município, tapando buraco na rua ou limpando praça.
É possível apontar os pontos do país em que a situação é mais crítica?
Cada estado tem sua miséria especifica. Minas Gerais, por exemplo, tem três: muitos presos provisórios, o uso disseminado de creolina para curar doenças de pele e uma grande quantidade de presos que morreram queimados, nos últimos quatro meses foram 33vítimas de incêndios. A miséria própria do Ceará são os presos comendo a comida dentro de sacos plásticos. Em Mato Grosso do Sul, há presos dormindo na pocilga, junto com porcos que são dos agentes penitenciários. Em Roraima, além da tortura, encontramos a direção do estabelecimento do Urso Branco colocando salitre na comida (substancia utilizada para dar a sensação de satisfação e para diminuir o apetite sexual). No Maranhão muitos presos denunciam, além de maus tratos, penas vencidas.
Desenvolva melhor as particularidades encontradas no seu estado, o Maranhão.
Encontramos também presídios superlotados, como o complexo Pedrinhas, que tem uma estrutura prisional apodrecida, velha, e muitos presos reclamando de excesso de prazo, é um dos estados onde isso mais ocorre. Há um defeito muito grande, os presos são condenados no interior e deslocados para grandes presídios na capital, o que gera o problema de que o detento vem e o processo fica. Os juizes de execução ficam nas cidades não mais acompanham o processo.
E isso é uma realidade para todo o Brasil, não só para o Maranhão. Vamos sugerir que delitos médios, sem violência, como furto, roubo, drogas pequenas, que não são pessoas irrecuperáveis, cumpram pena lá diante do juiz que os sentenciou, nas cadeias públicas municipais. Os delitos mais complicados, mais graves, poderiam ser cumpridos em complexos regionais. Já os mais perigosos, membros de associação criminosas organizadas, encontrariam seu tratamento em instituições federais.
Existe uma inegável distância entre os direitos estabelecidos pela Lei de Execuções Penais (LEP) e o que se encontra na outra ponta do processo. O que leva as engrenagens dessa estrutura a rodar em falso com tanta facilidade?
O sistema tem algumas contradições graves. Uma delas é o fato de que a legislação que tipifica crimes, que dá as sentenças, é a União quem produz, mas quem cuida do preso são os estados. Há um descompasso entre o legislador que cria, o juiz que julga e o gestor que executa. Toda vez que o Congresso endurece um regime, tipifica novos crimes, ele não diz onde está a fonte dos recursos para aplicar isso. Da mesma forma que um juiz, quando não dá pena alternativa e simplesmente coloca na cadeia, não pergunta ao governo se há espaço. Para agravar a situação, a maior parte dos secretários, promotores, juízes não visita o sistema penitenciário. Esse desconhecimento é outra causa fundamental da distância que você apontou entre teoria e prática.
Há também a desqualificação muito grande dos agentes penitenciários, a ingerência política no sistema e a militarização, há muitos militares gerindo secretarias. Isso embrutece o sistema e é ruim porque em vez do estado recuperar o preso ele o reprime, o violenta. O Estado todos os dias bota na rua verdadeiras feras humanas. Ele não dá trabalho, não da qualificação, coloca em celas superlotadas e ainda barbariza, vai se esperar o que?
Apesar dos problemas encontrados, como o senhor vê as perspectivas para o problema?
Eu sou otimista por alguns motivos. A maioria dos que estão presos são recuperáveis. Além disso, o Estado brasileiro, por meio de todos os seus entes, certamente tem estrutura suficiente para dar conta de sua obrigação legal. São 27 governos estaduais, 27 Tribunais de Justiça, promotorias, secretarias e muitos outros órgãos. Se com esse aparato a nação brasileira não conseguir cuidar de 440 mil pessoas, que já estão encarceradas, é melhor ela fechar suas portas, porque não vai dar conta dos 185 milhões de brasileiros.
Nos últimos tempos o governo federal criou estruturas dentro do Ministério da Justiça para dar atuar nesta área, como o Depen (Departamento Penitenciário Nacional) e o Pronasci (Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania). Esse assunto está na agenda do país e o maior ganho da CPI é ter ajudado a colocar esse tema em pauta de uma forma diferente do que vinha sendo feito. O preso era sempre mostrado em rebeliões, em casos bárbaros, era a forma de eles mostrarem que existiam. Mas esse assunto está sendo abordado hoje de forma qualificada, entenderam que tratar de preso é tratar da segurança de quem está solto, afinal a reincidência hoje é de 80%. O cidadão sai desempregado, desqualificado, analfabeto, mais velho e com atestado de ex-presidiário. Que perspectivas uma pessoa dessa pode esperar encontrar?
quinta-feira, 19 de junho de 2008
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